No mundo real, as relações interpessoais e corporativas possuem inevitáveis efeitos jurídicos. Tratando-se de atos envolvendo pessoas/entes privados, tudo aquilo que a lei não proíbe pode ser feito, e então as regras e os limites passam a ter como parâmetro o que as partes que se relacionam combinaram.
Quando a ideia inovadora sai do campo teórico para ganhar vida em um negócio (empreendimento), normalmente deve passar pelas etapas de estruturação formal. Esta organização, que permitirá a completa exploração de seu objeto, compreende desde o arranjo societário (se envolver mais de uma pessoa) como todas as relações jurídicas com terceiros, sejam eles investidores, parceiros de desenvolvimento, fornecedores, colaboradores ou clientes.
No entanto, é natural que no caso das startups (organizações empresariais, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação) não seja possível vislumbrar-se desde logo com clareza ou exatidão o horizonte de tais relações jurídicas. Muitas vezes o próprio modelo de negócio é algo ainda incerto por tratar-se de um projeto incipiente. Mesmo assim, os primeiros passos – como antes dito, já geram consequências no âmbito jurídico. Desde a coautoria ou o compartilhamento de titularidade de uma solução a ser explorada, a divisão de tarefas em seu desenvolvimento, até a definição das etapas que se pretende seguir para levar adiante o novo negócio, todos estes fatos ou projeções resultam em relações a serem abordadas, deliberadas e, principalmente, pactuadas, para tornarem-se, então, regras cuja observância possa ser seguida.
É neste estágio “embrionário” do projeto ou negócio que mais se amolda a aplicação dos contratos preliminares como o MOU, sigla em inglês de memorandum of understanding, ou, em português, Memorando de Entendimentos. Esta modalidade de instrumento tem também sua utilidade em tratativas prévias que versem sobre um negócio já estruturado, mas em momento no qual as partes ainda precisam amadurecer detalhes que constituirão a relação contratual definitiva.
Como visto, o MOU tem natureza de ajuste formal preliminar ou preparatório. Não substitui, por exemplo, o Contrato Social, tampouco os contratos definitivos típicos aplicados à atividade operacional, mas pode alcançar tudo aquilo que já é possível estabelecer como propósito das partes até que a relação entre elas ou o objeto a empreender possua contornos mais definidos.
Podem firmar o memorando de entendimentos duas ou mais partes que figurem como personagens da relação negocial, desde que entrelaçadas no objeto tratado no instrumento.
Internamente, o MOU poderá dispor, por exemplo, para registrar os princípios e os parâmetros da relação entre as pessoas envolvidas durante o estágio de maturação do negócio (se, por exemplo, dividirão ou compartilharão tarefas e recursos, se pretendem constituir uma ou mais sociedades empresárias para exploração do negócio, a participação que caberá a cada um em tal sociedade, etc.).
Externamente, ou seja, na relação com terceiros, o MOU terá utilidade tanto para estabelecer regras já passíveis de aplicação na fase preliminar da relação – até que as partes se aprofundem na construção da relação definitiva ou aguardem a maturação do projeto que lhe serve de objeto, como também para registrar de modo antecipado os princípios e parâmetros que desejam ver aplicados quando (e se) chegarem à instrumentalização de um contrato que terá eficácia mais ampla e definitiva.
Certamente o instrumento formal de entendimentos mais relevante para uma startup, em sua gênese, é o MOU que trata das contribuições e atribuições de cada um de seus integrantes nesta fase em que ainda se está amadurecendo o produto de tal união de propósitos, as competências a serem empregadas no desenvolvimento e execução do negócio, a forma e a proporcionalidade de partilha de seu capital e aos demais aspectos práticos que indicam o objetivo de seus agentes e da própria atividade.
E porque não relegar tais aspectos à fase de constituição formal da empresa (Contrato Social)? A resposta é simples: embora alguns dos elementos antes mencionados (v.g. objetivo social, participação societária) devam figurar no documento de formação jurídica da (provável) sociedade empresária que haverá de surgir, tratando-se de negócio ainda em desenvolvimento como sói acontecer nesta espécie, é natural que até se chegar à fase de registro da empresa muito possa acontecer. Não é raro que a ideia inicial, num empreendimento que tem como característica principal a inovação, acabe sofrendo mutações que afetam desde o meio de sua exploração (modelo de negócio) como a participação de cada integrante de seu desenvolvimento, em razão do maior ou menor investimento econômico, de trabalho e especialmente intelectual.
Aspectos que se afiguram relevantes em um MOU típico para empreendimentos incipientes de ambiente de inovação são, basicamente:
- a indicação clara de quem participa do negócio;
- a definição detalhada, tanto quanto possível, das competências e obrigações de cada integrante;
- a “fatia” que se pretende destinar do futuro capital social da empresa ou do capital resultante de sua alienação;
- os efeitos do descumprimento total ou parcial das atribuições elencadas na disposição do capital;
- as regras aplicáveis à hipótese de ingresso de capitais externos de investimento;
- as regras aplicáveis à transferência de participação, inclusive quanto ao direito de preferência; e
- as regras aplicáveis no caso de dissolução ou venda total do projeto ou operação.
Além dos elementos acima sugeridos, o instrumento deverá, obviamente, tratar de todas as demais disposições particulares ao negócio e ao relacionamento de seus integrantes, já que – como dito, o Memorando de Entendimentos é um instrumento que, inobstante possua inegável validade jurídica no direito obrigacional, é figura contratual extremamente abrangente quanto ao seu objeto.
Há empreendimentos inovadores que demandam anos de maturação, e, neste período, paralelamente à construção de soluções teóricas e práticas que possam tornar o negócio apto à exploração, comumente ocorre a busca por fontes externas de investimento, tanto para financiamento de tal desenvolvimento, como para a própria colocação do produto ou serviço no mercado consumidor. Assim, o MOU, também em relação a estes aspectos, será útil para desde logo definir consenso quanto às ideias iniciais de relacionamento com terceiros, a disposição dos parceiros em abrir mão de alguma fatia do negócio como contrapartida de investimentos, o modelo jurídico – ou os modelos jurídicos – aplicáveis para captação de investimentos, e até mesmo a quem compete dirigir eventuais negociações deste gênero.
O ordenamento jurídico brasileiro, aliás, está prestes a receber o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador. O Projeto de Lei Complementar 249/2020 tramita em regime de urgência no parlamento e espera-se que seja promulgado ainda no primeiro semestre de 2021. A norma, além de contemplar medidas de fomento ao empreendedorismo de inovação, prevê regras interessantes em relação à forma de participação de investidores nas startups, como o aporte de recursos sem que resulte em integração do capital social, flexibilizando, assim, investimentos de terceiros que possam alavancar o negócio objetivado pela startup.
Se aprovado, o texto original do PLP 429/2020 deve trazer ainda mais segurança ao investidor que realizar o aporte de capital ampliando a regra já consagrada na chamada “Lei do Investidor Anjo” (LC 155/2016) de modo que não
seja afetado pelo eventual insucesso da startup, dado que não figuraria como sócio, participando dos destinos do empreendimento de forma consultiva. E esta deliberação – sobre a forma de ingerência do investidor, pode ser instituída desde logo no MOU, seja no instrumento firmado apenas interna corporis, seja por outro Memorando, celebrado com quem esteja a fazer o aporte de capital.
A formalização de regras, em caráter preliminar, é, portanto, instrumento útil a nortear as ações empreendedoras do modelo startup e certamente reduzirá o risco de conflito entre seus signatários.
ERLON F CENI DE OLIVEIRA
AdvogadO - SÓCIO FUNDADOR
Atuando na advocacia empresarial desde 1993. Graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Especialista em Direito Processual Civil, Trabalhista e Empresarial.